Precisamos falar de religião
A teocracia de baixa extração instalada em todos os setores do governo Bolsonaro não é um fenômeno isolado nem, muito menos, fruto de geração espontânea. Os maus bofes neopentecostais derivam da histórica interdição do debate religioso, tido como desrespeitoso, em si.
Esse expediente tem sido responsável pela blindagem histórica tanto de padres pedófilos como de pastores ladrões, tudo em nome de uma falaciosa pureza cultural dos sistemas de crenças usados, quase que exclusivamente, para oprimir e manter sob controle os pobres e a classe trabalhadora.
Essa discussão quase sempre nos remete, de forma primária, à mais popular das citações de Karl Marx, a de que a religião é o ópio do povo. Quando referenciada à direita, a definição soa como um alerta à face maligna do comunismo ateu e desagregador da fé, contra o qual se deve direcionar, sem misericórdia, todas as armas da civilização judaico-cristã – termo, aliás, que não significa absolutamente nada.
Quando contextualizada em sua origem, na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, um texto de Marx de 1843, a frase eleva o significado da discussão a um patamar racional muito caro ao debate político.
Diz Marx, no texto original: “(…)A miséria religiosa constitui, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real(…)”.
Não se trata, portanto, de um libelo contra a religião, mas uma reflexão profunda e ainda extremamente atual sobre a ação deletéria das ilusões religiosas para a compreensão da luta de classes.
A rendição do chamado marxismo ocidental ao alegadamente imutável misticismo das massas e a adesão de muitos pensadores de esquerda – marxistas ou não – à tese da revolução com Cristo resultou, nas democracias liberais, em uma armadilha contra-civilizatória.
Isso significa, na prática, que se tornou impossível vencer eleições sem fazer concessões à irracionalidade delirante das religiões, sobre as quais estendem-se narrativas anticientíficas tratadas como cultura e bem imaterial da humanidade.
Foi nesse campo aberto e desprovido de qualquer anteparo crítico que se criou essa superestrutura religiosa de dominação política, nos três poderes da República, comandada por charlatães que trocam verbas por bíblias e ouro, enquanto boa parte do rebanho é empurrada para o abismo da inanição.
O argumento recorrente, no campo do catolicismo, à bravura da Teologia da Libertação e, no espectro do protestantismo, à relevância social da presença religiosa nas comunidades mais pobres do País, não resiste à comparação entre bons pastores e bons arremessadores de anões: o problema não é a qualidade do atleta, mas a infâmia do esporte.