O mistério da médica derrotada pelas gangues da cloroquina

3 de junho de 2021, 10:45

É incômoda a dúvida que já existia e apenas foi fortalecida pelo depoimento da infectologista Luana Araújo na CPI do Genocídio.

Como alguém com as posições, o currículo e o talento de Luana achou que poderia enfrentar, com a ciência, as gangues negacionistas da cloroquina no Ministério da Saúde?

A médica ficou apenas 10 dias como secretária de Enfrentamento da Covid e foi mandada embora. Não havia como ficar. Mas Luana não deveria nem ter entrado.

Espaços hostis são ocupados por discordantes em todas as áreas. Assim é a vida em qualquer atividade. Ocupar espaços complicados significa, muitas vezes, conquistar avanços improváveis.

É assim também na política, onde progressistas sempre conviveram com conservadores até mesmo dentro do mesmo partido, nem sempre avançando, mas mediando conflitos e equilibrando forças.

Mas o governo Bolsonaro não tem espaços a serem conquistados por discordantes, porque ali todos só pensam como Bolsonaro. Uma dúzia de generais que discordaram foram mandados embora. O governo não tem conservadores a serem desafiados, mas ultrarreacionários fundamentalistas irredutíveis.

Colaborar com o governo Bolsonaro equivale a ser cúmplice do que a política e o poder tiveram de pior desde a ditadura. Não há em nenhuma área do governo, da economia à cultura, passando por educação e saúde, chance alguma de discordância.

E Luana Araújo não pretendia apenas discordar, mas transgredir. A médica esperava defender a verdade numa área tomada pela mentira dos cloroquinistas. A cloroquina movimenta bilhões.

O defensor da cloroquina é um obsessivo só aparentemente ignorante ou ingênuo. Ele é acionado por interesses poderosos, ou muitos políticos não correriam o risco da cumplicidade com a maior gafe científica do século.

Mas Luana estava lá e lá ficou por 10 dias, até alguém descobrir que ela não poderia coordenar uma área que nega a vacina, nega a máscara, nega distanciamento, prega tratamento precoce e sabota a ciência.

Luana disse na CPI que, como técnica, poderia fazer a sua parte, à margem dos interesses econômicos e políticos. Mas como?

Na ditadura, nomes de expressão do conservadorismo permaneceram ao lado dos militares, e dentro do partido do governo, a Arena, por muito tempo, para fazer valer a tese da redemocratização.

Magalhães Pinto, Severo Gomes, Teotônio Vilela, Sinval Guazelli e Daniel Krieger defendiam a volta da democracia e desafiavam a posição da maioria dos militares.

Eles testaram (muitos debandaram) os limites da ditadura. Alguns aliados dos militares, e depois dissidentes, fizeram mais pela democracia, dentro da Arena, do que alguns democratas frouxos dentro do MDB.

Mas nenhum deles sobreviveria hoje ao lado de Bolsonaro. Os políticos que discordavam dos ditadores não teriam uma sobrevida de 10 dias, como Luana Araújo teve, dentro da estrutura montada pelo fascismo bolsonarista.

E a infectologista achou que poderia conviver com os bolsonaristas sem se infectar? Foi mandada embora sem explicações.

Luana foi brilhante em alguns momentos na CPI. Como quando fez uma pausa sutil, quase dramática, olhou ao redor e disse:
“Não estou vendo aqui nenhuma senadora”.

As senadoras geralmente presentes estavam ausentes, a CPI tinha apenas senadoras remotas.

Luana estava sozinha no meio de homens e estranhou. Imaginem quando se viu, no Ministério da Saúde, sozinha no meio de genocidas.

Escrito por:

Moisés Mendes é jornalista de Porto Alegre e escreve no blogdomoisesmendes. É autor de ‘Todos querem ser Mujica’ (Editora Diadorim). Foi editor de economia, editor especial e colunista de Zero Hora.

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