Sobre sombras e luzes
Sou da geração dos jovens que se informavam lendo Opinião, EX, Movimento e Pasquim. Sou do tempo dos atentados contra as bancas de jornais que vendiam esses tablóides. Época em que os artigos de jornais eram censurados e substituídos por receitas culinárias e por poemas de Camões; de prisões arbitrárias de jornalistas, torturados e mortos pela repressão.
Sou do jornalismo combativo, feito no asfalto, na periferia e na resistência à repressão. Sou da geração que fez da missa pelo assassinato de Vladimir Herzog o primeiro grande enfrentamento civil contra a ditadura, abrindo caminho para a anistia e a campanha das Diretas Já.
Quase quarenta anos após o fim da ditadura militar, o fantasma do autoritarismo está de volta e, sendo a imprensa livre a maior inimiga do pensamento totalitário, nos tornamos alvo preferencial de ataques dos algozes da democracia. Afinal, como bem registrou Juan Luis Cébrian, em O Pianista no bordel, “não há nada que irrite mais o príncipe do que o conhecimento da verdade, quando ela se opõe aos seus fins ou impede seus propósitos.”
Desde a eleição do presidente Bolsonaro, o Brasil vem subindo anualmente no ranking dos países que mais registram atos de violência contra profissionais da imprensa.
Levantamento feito em 2020 pela organização internacional Repórteres sem Fronteiras registrou que o número total de agressões à imprensa no Brasil chegou a 580. No mesmo ano, pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) apontou que o presidente Bolsonaro foi o principal agressor de jornalistas em 2020, respondendo, sozinho, por 40,89% das agressões registradas pela FENAJ. Em relatório sobre o ano de 2021, a ABERT (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) aponta que o número de agressões subiu 22% em relação a 2020, e mais uma vez o agressor preferencial foi o presidente Bolsonaro, seguido por seus apoiadores. O mesmo levantamento apontou a ocorrência de cerca de 4.000 ataques virtuais por dia à imprensa, e cerca de 1,5 milhões de posts com mensagens ofensivas, em 2021.
Nesse contexto de violência, as jornalistas mulheres são os alvos preferidos do presidente e seus apoiadores, machistas, misóginos e preconceituosos contumazes. Segundo levantamento da ABEJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), no ano de 2021 foi registrado um episódio de violência a cada três dias contra mulheres jornalistas. Destes, 52% desferidos por autoridades públicas. Os casos das jornalistas Patrícia Campos Mello, Juliana Dal Piva e, mais recentemente, Miriam Leitão, causam indignação e ganharam forte repercussão.
Como registrei acima, no Brasil, a incitação ao ódio, à violência contra jornalistas e imprensa tem como maior expoente o próprio presidente da república, que diuturnamente ataca jornalistas e busca eliminar a liberdade de imprensa. Estimulados e validados pelo “mito”, seus apoiadores multiplicam exponencialmente a amplitude dos atos de violência contra jornalistas, desde as menores cidades, às metrópoles.
A síntese dessa pulsão violenta converge para o rancor contra tudo o que a imprensa representa: a luz da informação genuína e a verdade.
É nesse tempo de cólera que nós, jornalistas, seguimos no exercício de nossa profissão, do nosso compromisso irrecusável e inafastável de não calar os fatos, de iluminar com a verdade, de combater a negação dos direitos fundantes da democracia. Como disse o jornalista e escritor Gabriel Garcia Marques: “Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte.”
A contestação faz parte da minha personalidade, da minha formação como cidadão e jornalista. Ela estará comigo até o fim e pulsará ainda mais fortemente nestes tempos de cólera.
Aos colegas jornalistas, companheiros de trincheiras, meus votos de energias renovadas, de apego democrático. Desejo ainda estômago e coração saudáveis para enfrentarmos as farpas dos inimigos da liberdade e da democracia.