(Foto: Reprodução/YouTube)

Para Carlos Fico, historiador que obteve os áudios militares, só o fim do artigo 142 é capaz de pacificar o país

18 de abril de 2022, 21:38

Indignado ao ver as provocações feitas pelo filho 03, de Bolsonaro, à jornalista Miriam Leitão, duvidando de que ela tenha sido presa aos 19 anos, cercada por cães treinados para atacar ao menor sinal e, grávida, o historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ -, Carlos Fico, de posse de 10 mil horas de gravações dos julgamentos do Superior Tribunal Militar (STM), decidiu enviá-los à jornalista. “Eu pensei comigo: ‘bom, eu tenho os áudios’. Miriam os divulgou nesse domingo de Páscoa.  

Fico obteve o material em 2017, depois de acompanhar a luta do advogado criminalista e pesquisador Fernando Fernandes,para tê-los, desde 2006. A decisão de torná-lo público foi da ministra Carmem Lúcia, em 2011, mas só em 2015 esse material foi digitalizado e ambos tiveram licença para copiar todo o conteúdo das gravações, que compreende o período de 1975 a 1985, quando as sessões passaram a ser gravadas.  

Nos áudios fica-se sabendo o que sempre foi dito: os ministros civis e militares sabiam de tudo o que se passava nos porões. Calaram por constrangimento e medo, aponta Fico. Em um dos áudios, o ministro Júlio de Sá Bierrembach, chama os agentes da repressão de “sádicos” e diz que “já é hora de acabar de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais”. Atéagora ohistoriador já ouviu cerca de metade das gravações – tarefa que não delega a nenhum dos seus auxiliares, para não perder o encadeamento do conteúdo -, se atendo aos diálogos até a promulgação da lei da anistia, de 1979.

247– Nós tivemos agora, no dia 17, a passagem dos seis anos do golpe de 2016. Você como estudioso do tema há muito tempo, imaginou alguma vez que os militares voltariam ao poder, no país?

– Eles na verdade não voltaram ao poder. O eleitorado brasileiro votou, escolheu um governo de extrema direita, que recorreu muito fortemente aos militares para ocupar esses postos todos, pela ausência de tradição e partidos de direita, com quadros. A minha impressão é a de que é preciso buscar entender por que o eleitorado brasileiro fez uma escolha desse tipo. Aliás, numa onda conservadora que afeta não só o Brasil, mas também outros países.

247– O Bolsonaro é resultado do golpe de 2016?

– Eu não uso essa expressão com esta conotação. O impeachment da presidente Dilma é muito questionável, em todos os aspectos, mas eu nunca uso a expressão: foi um golpe, vai ser um golpe. Eu prefiro usar a expressão ‘golpe de estado’ apenas dentro da conceituação política. Ou seja, a derrubada de um presidente constitucional pela força das armas com apoio militar. Não foi o caso. Certamente é um impeachment muito discutível, mas eu não uso essa expressão para designar o impeachment da presidente.

247 – Em que medida essa não punição dos militares, essa transição negociada abriu caminho para a banalização do mal que se vê hoje?

– Não ter havido o julgamento de violações dos direitos humanos, praticados por militares e civis também, por conta da lei de anistia foi muito negativo. Tornou a transição brasileira uma transição inconclusa. Não houve uma ruptura, não houve um julgamento, não houve punição. E criou-se uma aberração jurídica. A anistia, regra geral, conceitualmente, ela é feita para anistiar as pessoas que são julgadas e condenadas. Muitos falam: tem que ver os dois lados.  

Por que esta expressão não faz sentido? Porque os presos políticos, a esquerda que se intitulava revolucionária, ou mesmo aquelas pessoas que foram presas e julgadas, essas pessoas, que foram presas e sobreviveram à tortura, elas foram julgadas pela justiça militar. Julgadas e condenadas, e, portanto, merecedoras de anistia, porque você só pode anistiar alguém que, em teses, cometeu um crime ou tenha sido condenado, mesmo que injustamente.  

Os repressores, os algozes, os agentes da repressão militar e em parte civis que cometeram violações aos direitos humanos, eles nunca foram julgados. Então eles foram anistiados em 1979, do quê? De modo que a gente tem esta aberração, que é uma anistia não se sabe do quê. Supostamente essas pessoas nunca foram criminosas, embora evidentemente tenham sido, mas na medida em que nunca foram condenadas e punidas, foram anistiadas do quê?

247 – E nunca assumiram o que fizeram…

– Alguns poucos, sim, na época da Comissão Nacional da Verdade, mas grande maioria não, até porque a maioria já está morta. De modo que eu acho que isto foi um prejuízo grande para que a sociedade brasileira tenha uma relação mais sadia com o seu passado, conhecendo o que houve de errado, até para a superação.

247 – Os militares fechados com o Bolsonaro tentam desconstruir a história, a despeito de todos os fatos trazidos por quantos já estudaram o tema profundamente, como você. Ao mesmo tempo, eles tentam disseminar uma outra narrativa entre a população jovem, que desconhece o tema. Como você, como historiador e outros estudiosos, podem fazer valer o que já foi estudado e o que já foi comprovado?

 – Eu não sou muito otimista quanto a isto, não. Depois desse tipo de evento, que a gente chama de um evento traumático, que são as ditaduras, sistemas totalitários, apartheids, depois desses eventos é muito comum, não só no Brasil, mas em todos os lugares, a constituição de memórias confortáveis.  

Ou por ignorância, ou por má fé ou uma pré-disposição do ser humano de elaborar o passado, muita gente embarca nisto, dizendo que não foi de todo ruim, não havia tanta tortura, tanta morte… Embarcam no que a gente chama de memória confortável. O que a gente pode fazer como historiador é isto que eu estou fazendo, divulgando não apenas trabalhos acadêmicos, mas tentar trazer para o grande público evidências documentais incontestáveis. Esses áudios, a grande vantagem é que eles não são apenas documentos históricos, papéis velhos. Têm esta capacidade. Você é capaz de ouvir a voz daquelas pessoas, assim como no caso também de filmes e fotografias. Nesse nosso caso aqui, essas vozes têm esta capacidade muito grande de convencimento de que aquilo realmente ocorreu. Isto é o máximo que a gente pode fazer, na esperança… Os negacionistas a gente não têm esperança de convencer, mas as pessoas que têm esta posição em relação a esses assuntos, quem sabe não mudam de posição diante de uma prova tão irrefutável ouvindo a voz de generais, almirantes e brigadeiros dizer que, sim, havia tortura?

247 – Quanto falta para ser ouvido, deste material?

 – Olha, nós temos um total 10 mil horas. Eu estabeleci um marco cronológico até a lei da anistia, porque depois dela todos tiveram que se adequar à lei. Não havia mais julgamentos. Eu já ouvi de 1975 até 1979. Agora o cálculo do que falta eu não sei dizer se são quatro, cinco, ou seis mil horas. Provavelmente algo como a metade do material. É difícil de calcular.

 247 – Qual era o foco, o objeto da sua pesquisa, inicialmente?

– Era saber se esses ministros observavam as constituições da ditadura, as de 1967 e 1969, ou se eles julgavam apenas pelas leis de exceção. É uma discussão mais conceitual, sobre a moldura institucional da ditadura. Claro que ao ouvir estas gravações eu fui anotando e observando esses casos aí, mais escandalosos, que eu divulguei lá, para a Míriam Leitão.

 247 – Você acredita que ainda vai encontrar casos muito escabrosos por esse caminho?

– Depois que eu soube o que aquele rapaz falou eu pincei alguns casos que julgo já bastante escabrosos e os enviei para a Míriam. Foram meia dúzia, mas são milhares de casos. Eu tive de pegar uma sessão que, sei lá, dura três quatro horas, encontrar essas passagens específicas de referência à tortura, fazer a gravação para tornar a coisa viável para se publicar na imprensa, porque não é possível publicar todo esse conteúdo. Quando eu mandei para ela, eu mesmo ouvindo aqueles trechos em separado percebi a importância que isto teria, não para mim, ou para os colegas historiadores, que já estamos carecas de saber que houve tortura, mas para o grande público, por conta dessa capacidade comprobatória da voz viva, vamos dizer assim, daqueles ministros. Então a gente vai – eu digo a gente, mas sou eu e os meus auxiliares -, separar outros exemplos, na medida do possível. Mas eu tenho muita coisa para fazer nesta vida, muita coisa para escrever, enfim…

 247 – Você divide esta tarefa com alguém?

– Não. A audição é solo, porque para eu ter clareza do que estou fazendo eu tenho que ouvir tudo, né? Há um encadeamento.

247 – Muitos desses torturadores já morreram. Você acha que a lei da anistia deveria ser rediscutida, não no sentido de punir, pois como já dissemos, não há clima político para isto, mas para levar o Estado oficialmente a um pedido de desculpas aos familiares?

– Eu acho que isto já foi feito, até. Na época do Paulo Abrão, (que dirigiu a comissão de anistia) havia aquelas caravanas que iam pelos estados, levando um pedido de desculpas oficial, mas eu acho que a gente vai enfrentar esse passado é com o auxílio da história.  

247 – Mas não seria o caso de o próprio presidente da República fazer isto?

 -Não. Seria importante uma discussão no Congresso Nacional a respeito desse assunto porque eu estou convencido, há muito anos, de que o artigo 142 precisa ser alterado. Quase todos os oficiais militares, em geral, têm a convicção de que o artigo 142 dá às Forças Armadas a incumbência da intervenção militar. O próprio vice-presidente, que é um general golpista, já falou isto. É isto que a gente tem de enfrentar.

247 – O artigo é ambíguo…

– A Constituição de 1988 não deu conta de tirar, por isto eu acho que tem de ser discutido e retirado. É claro que o STF já disse que não é isto, mas ele é dúbio, ele é mal redigido e foi imposto pelos militares desde a Constituinte de 1987/1988. Então o Congresso é que deveria fazer este esforço de revisão constitucional do 142. Eu acho que se o Congresso se mexesse nesse sentido seria maravilhoso. Pedir que os comandantes militares peçam desculpas seria importante, mas eu sou descrente em relação a isso. Acho que é importante levantar dados bem substantivos como eu tenho procurado fazer – e ainda vou divulgar muita coisa –, em relação a essa tradição de intervencionismo. Estou escrevendo um livro, que ainda vai demorar bastante tempo, no qual eu vou tentar demonstrar com dados a necessidade de alteração dessa tradição de alterações que permitem o intervencionismo do poder militar na democracia.

247 – O atual Exército seria capaz de aderir a um golpe?

– Eu tenho muito medo é da Polícia Militar. Elas são muito mal treinadas, mal comandadas. E se houver alguma coisa do tipo invasão do capitólio… Vamos supor que o Bolsonaro perca a eleição e haja um bando de malucos aí invadindo o TSE ou sei lá mais o quê… Eu tenho medo é da PM. O Exército se envolver numa aventura dessas será prova de muita burrice. Nunca se deve duvidar, mas seria uma tolice tremenda. Se bem que eu acredito que haveria uma reação popular muito dura. Mas a PM é problemática. Eles têm ainda esse ethosautoritário, uma brutalidade, e mais a presença de ex-PMs, essa coisa toda pode representar um risco. Se há alguma coisa a temer é esta.

247 – A que você atribui esse silêncio quanto à prática da tortura, quando todos sabiam?

– Os ministros do STM tinham conhecimento absoluto do sistema repressivo. Num dos áudios o ministro Júlio Bierrembach condena a tortura, mas exalta a Operação Bandeirantes. Eles estavam tão mergulhados na repressão, que ao mesmo tempo que condenavam a tortura, não se abalavam com essas informações. Em geral ficavam constrangidos. O general Fragoso, por exemplo, diz isto. ‘Agora estão aí falando em DOI-CODI. O fato de os militares estarem envolvidos em torturas me deixa muito constrangido’. Então havia constrangimento, mas não agiam. E os ministros civis, os togados, tinham medo, porque o SNI acompanhava o desempenho dos ministros e de vez em quando lançavam documentos dizendo que o ministro fulano tem absolvido muito, é muito benevolente. Tinha constrangimento, medo, mas eram coniventes com a tortura. Todos sabiam, porque essas informações circulavam pelos órgãos de informações.

247 – Como está vendo os arranjos para o ano eleitoral?

– Eu estou mergulhado nesse trabalho para não viver essa política. Acho que todos deveriam se unir para varrer da política essa gente tão desqualificada, tão autoritária e tão golpista. Eu gostaria muito que houvesse uma grande união de todos os democratas, da esquerda democrática, os democráticos de qualquer setor, percebendo a gravidade do momento. Não sei, é uma pretensão muito grande, mas espero que coisas como essa que eu provoquei, possam auxiliar a percepção da gravidade do momento. Não estamos falando de uma sucessão. Estamos falando de uma ameaça à democracia.

Escrito por:

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia

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