Palestinos homenageiam vítimas dos ataques de Israel em Gaza (Foto: Reprodução/Reuters)

O saldo desse conflito será fartamente distribuído

16 de outubro de 2023, 10:31

Gaza é um cemitério aberto, onde repousam os corpos esmagados sob os escombros, dos que foram colhidos nos bombardeios incessantes, e à espera de quantos mais vão tombar onde houver espaço, pois espaço não há mais. E tanto faz estar ferido ou morto. Feridos não serão socorridos. Mortos, não serão recolhidos. Vivos, resistem, fogem ou vagam pelo amontoado de concreto e ferros retorcidos.

Impossível ficar indiferente à paisagem de filme de catástrofe. E, o pior, não é ficção. Na TV os comentaristas repetem à exaustão uma mensagem em tom de positividade: Benjamin Netanyahu deu prazo para que saíssem. Só não esclarecem como transferir 362 quilômetros ocupados por 2 milhões de pessoas, de um dia para outro, para uma paisagem hipotética. Principalmente quando o entorno não se interessa em puxar para si a tragédia que se desenrola nos vizinhos. As fronteiras se fecham.

O mundo andava querendo ficar “arrumadinho”, com a geopolítica mudando de feição gradativamente, transformando-se em um ambiente multipolar pouco interessante para o império dos EUA, mas muito positivo para países que no passado andaram se estranhando, como a Arábia Saudita e o Irã, agora próximos, com as bênçãos da China, que aos poucos penetra no Oriente Médio. A movimentação chinesa movia pedras seculares do tabuleiro político, a fim de consolidar o seu projeto da rota da seda.

Ali, bem perto, o chefe do governo israelense, Netanyahu, enrolado em processos volumosos de corrupção, abriu o leque de apoio ao seu governo até à ultradireita e desestruturou o sistema jurídico a seu favor, a ponto de polarizar o país, ainda unido internamente, apesar dos pesares. E por “pesares”, leia-se a sua liderança, já bastante desgastada nos últimos anos.

A população não saía das ruas, tirando dele a concentração do que sempre foi caro aos israelenses, a inquebrantável segurança e inviolabilidade. De pouco ou nada adiantaram os avisos emitidos pelo Egito, o vizinho com quem tinha apenas relações formais, de não agressão, mas que se preocupou com as notícias de que o Hamas, grupo que controla a Faixa de Gaza desde 2006, estava se armando. O poder, este sim, era importante, e Bibi tentava se equilibrar nele, apesar dos protestos nas ruas.

Numa questionável, porém, “espetacular” (ainda que horrorosa e criminosa) investida, o Hamas rompeu a invisibilidade do drama palestino, espremidos e sufocados num chão que lhes era tirado aos nacos, sem que o mundo se importasse. Sem que isso virasse notícia. Sem provocar a indignação de ninguém. Há esse lado. Embora as cenas dos judeus sendo levados como reféns e tendo os seus corpos inertes exibidos de segundo em segundo na TV, comova – principalmente as que focam em crianças feridas -, a Palestina hoje é pauta obrigatória em todo o planeta.

A ferocidade com que Benjamin Netanyahu reagiu, tratando os palestinos como “animais” a serem dizimados, levou milhares às ruas em manifestações nas principais capitais, apesar das proibições. Mas quem vai calar a indignação da multidão, quando ela aflora? Quem vai admitir um genocídio acontecendo diante dos olhos, o conflito assimétrico, a indignidade da inanição, da sede, da falta de socorro, sem protestar ou denunciar?

Nem mesmo os dele. Enquetes mostradas por uma TV israelense, exibem jovens descomprometidos pedindo vingança e que os palestinos sejam mesmo dizimados. Porém, pessoas comprometidas com a política interna, como uma mãe que atua como enfermeira e tem uma filha e um filho partindo para o palco da guerra, sem fugir às suas obrigações para com Israel, já não tem a mesma convicção de antes do ataque.

Vamos supor que ela se chame “Raquel”, apenas para dar-lhe um nome. O que importa, mesmo, é o seu depoimento, diante do que assiste no momento em seu país. E como “Raquel”, os rabinos ortodoxos e muitos cidadãos comprometidos com a implantação de dois estados, desabafam. Não confiam na segurança israelense, não querem mais Netanyahu no poder, não querem a Palestina esmagada. E, sim, perderam a esperança.

“O sentimento mais forte para mim é a raiva. Raiva contra uma liderança promíscua e corrupta que assumiu o controle de todas as instituições governamentais. Ela (a liderança) não poderia fazer isso sem o apoio de grandes setores desta nação. Aqueles que apoiam o governo promíscuo o fazem por motivos de vingança, frustração e outros sentimentos que são mais adequados ao divã do psicólogo e não aos candidatos eleitorais”, revolta-se.

“A raiva é por não termos protegido a nossa casa suficientemente bem, indo massivamente às urnas com uma nova definição da sociedade israelita, afinal é a maioria nesta nação que suporta todo o fardo. Deixamos o campo para a gangue de escória liderada por um homem corrupto, ganancioso e desinibido, que usa seus sentimentos de inferioridade e os recruta para serem sua bucha de canhão. Para ser claro sobre o seu coração: ele os desprezava. Este acontecimento chocante de que ainda não compreendemos realmente o alcance nos diz de um Estado de Israel em perigo existencial”, adverte.

“Expor a distância entre as afirmações sobre um “exército forte” e a realidade, ficou exposta não só aos nossos olhos, mas aos olhos do mundo inteiro. Não é por acaso que porta-aviões americanos circulam por aqui. O fracasso é enorme em qualquer medida e os seus resultados colocam em perigo a existência do Estado de Israel”, teme.

“São 69 pessoas – o bando da escória que ocupa os tronos dos “escolhidos”. São os responsáveis ​​​​pelo maior fracasso da história da nossa existência. Os arrogantes e bandidos são revelados na hora da verdade como impotentes. Do início ao fim dos tuítes. Impotente. E, de novo, quem sai para defender a casa? “Traidores” “anarquistas” “Nortistas”, termina “Raquel”, num discurso que reflete boa parcela do que hoje é dito no interior dos kibutzim, nas mesquitas e em muitos lares.

Joe Biden, que no ano que vem enfrenta uma candidatura à reeleição, tanto pode comprar um barulho com o Irã (que evita entrar na guerra), e com isto tentar embaralhar as cartas gastando mais trilhões, quanto pode puxar para dentro do seu país o fracasso de Benjamin Netanyahu, a quem tenta proteger.

Bibi não vai segurar a unidade provisória que conseguiu estabelecer internamente em torno do conflito. Biden sairá chamuscado: ou pela briga interna israelense, pois levando-se em conta a voz das ruas, está numa torcida equivocada (basta ver a desobediência em Nova Iorque, em Paris e em Londres, onde governantes proibiram a defesa explícita da Palestina, mas tiveram de aturar grandes manifestações), ou por comprar um conflito desnecessário, com o Irã.

Enfim, o saldo desse conflito será fartamente distribuído para quantos dele se aproximarem visando apenas “negócios”. O mundo chora os mortos de ambos os lados. As imagens chocam, e isto terá um preço que não será pago com os lucros da Bolsa de Valores.

Escrito por:

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia

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