O marco temporal e a demarcação dos poderes
Desde a campanha eleitoral de 2018, o então candidato da extrema direita e seus fiéis generais dispararam ameaças à democracia. Ora atacando o STF, ora o Congresso Nacional, ora incitando seus eleitores a atos de violência contra adversários políticos – quem se esqueceu da cena de Bolsonaro, em 2018, durante um comício no Acre, com um simulacro de fuzil (era um tripé), convidando os seus apoiadores a “fuzilar a petralhada”?
Seguindo à risca o manual de Steve Bannon, principal ideólogo do governo de Donald Trump, incensado por extremistas como Matteo Salvini e Viktor Orbán, o bolsonarismo colocou em prática o modus operandi da extrema direita, explorando fortemente as redes sociais como instrumentos de disseminação de desinformação, discursos de ódio e, o que nos interessa aqui, de ataques diuturnos contra as instituições. A estratégia foi distorcer fatos, construir conceitos dos mais absurdos como o “marxismo cultural”, criminalizar a política e “vender” uma imagem de antissistema. Apresentar Bolsonaro e seus aliados como outsideres e, portanto, moralmente integro, salvaguardados da política tradicional.
Uma das características do governo de Bolsonaro foi a “cupinização” dos pilares da democracia. Executivo, legislativo e judiciário, durante o governo fascista, foram corroídos, devorados em suas funções. Nem a dedetização pretendida pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que tentou o quanto pode imprimir o mínimo de independência à Câmara, conseguiu impedir o avanço contra a autonomia da Casa de leis.
Em 2021, ao assumir a presidência da Câmara, o deputado Arthur Lira e sua base parlamentar aderiram aos projetos do bolsonarismo, seduzidos pelo “canto da sereia” das verbas do orçamento secreto e pela terceirização da execução do orçamento como um todo. A fidelidade ao governo foi tanta, que nenhum dos 140 pedidos de impeachment foi sequer colocado em votação por Arthur Lira. Isso, mesmo havendo entre os pedidos, dezenas de denúncias de crimes de responsabilidade contra o ex-presidente. Durante a campanha de 2022, Lira também se calou em relação aos ataques de Bolsonaro à Justiça eleitoral e à democracia. As mensagens que dava, vinham no sentido de apoio às falas do ex-presidente. Em um comício em Alagoas, Lira afirmou que para o contexto nacional, queria o modelo de Bolsonaro, que ninguém representava mais o ex-presidente do que ele, e também que “roía o osso” com Bolsonaro. Maior declaração de identificação, impossível.
Em meio a isso tudo, o único pilar que se manteve firme na defesa da Constituição e do estado democrático de direito foi o STF. Sozinha, a Corte maior do país teve, em muitos momentos, que avançar sobre as atribuições dos outros poderes que permaneciam inertes. Foi assim durante o enfrentamento da pandemia da COVID-19. Além de agir na inação do Poder Executivo, teve que defender o sistema eleitoral dos ataques engendrados pelo então Chefe do Executivo, através da campanha de descrédito das urnas eletrônicas. Também puniu os propagadores de fake News e do discurso de ódio, disparados aos milhões pelo gabinete do ódio. Não bastante, teve que suprir as omissões do então PGR, Augusto Aras, protetor empedernido de Bolsonaro e seu entorno.
No último dia 8 de janeiro, bem definido por Rosa Weber como “dia da infâmia”, os cupins do fascismo que há muito ocupavam portas de quartéis, bloqueavam estradas, incendiavam veículos e ônibus, armavam bombas para destruir aeroporto, alcançaram seu objetivo, devastando os prédios dos três poderes. Mas mal sabiam eles que a democracia é uma ideia que se mantém de pé, ainda que violados os prédios que a representam.
Passada a tempestade, o vale-tudo nas redes sociais, a vandalização, o terror, vieram as investigações, os julgamentos e as punições aos responsáveis. Contudo, as marcas da passagem de Bolsonaro permaneceram e atritam até hoje a relação entre os poderes da república. Os conflitos entre o Congresso Nacional e o STF são um sintoma da “gramática política” de Bolsonaro, que por pouco não solapou a nossa democracia.
É inadmissível que as relações entre o legislativo e o executivo continuem se pautando exclusivamente por interesses personalistas de angariar (mais) verbas e cargos na máquina administrativa, sem levar em conta o interesse do país. É inadmissível que o Supremo Tribunal Federal tenha que ficar repetindo que está cumprindo a sua função de interpretar a constituição e que cabe ao Tribunal, sim, suprir omissões legislativas. Todo esse problema e agastamento tem uma fonte comum. Sabemos qual é.
O enfrentamento entre STF e Senado, no caso do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, é um sinal de que o país necessita urgentemente de uma pacificação institucional. E nesse embate nada alvissareiro, a queda de braço entre os dois Poderes cairá no colo de quem não criou o problema e que com ele nada tem, o governo federal. Caberá a Lula o desgaste com o veto, ainda que parcial, do projeto de lei aprovado pelos parlamentares, que antagoniza com a decisão do STF.
Toda essa cizânia é resquício do fel deixado por Bolsonaro, que segue amargando as instituições. É urgente que se restabeleça a harmonia que a carta constitucional prescreve em seu artigo 2º, quando diz, que os poderes são “independentes e harmônicos”. É indispensável que o veneno bolsonarista seja definitivamente purgado. É isso que a democracia requer.