Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Não foi só o Brasil quem voltou

19 de setembro de 2023, 16:51

Com a postura que cabe a um chefe de estado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se apresentou para o tradicional discurso de abertura dos trabalhos da ONU. Qualquer roteirista em busca de uma boa história deveria estar atento àquela figura que, ostentando as cores do seu país, na gravata, nem precisava abrir a boca para dizer o que disse: O Brasil voltou.

Toda a sua performance demonstrava um ponto inquestionável: foi Lula quem voltou. Ali estava alguém com uma trajetória tão inusitada quanto surpreendente. A despeito de tudo e todos, desafiando um passado em que o julgavam morto politicamente, Lula surge na cena mundial como um dos principais líderes da atualidade para falar do que sempre falou: fome e desigualdade.

“A fome, tema central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã. O mundo está cada vez mais desigual”, denunciou.

Não com uma fala demagógica e pueril quanto – nem é bom lembrar que já ouvimos -, mas com a autoridade de quem traz na biografia a vida de retirante que embarcou num pau-de-arara para escapar para uma vida que nenhum escritor de talento poderia imaginar.

De novo? Perguntariam alguns. Não. Com muito mais embasamento teórico, aliado à lição de vida. Com toda a emoção do sofrimento de 580 dias de solidão, de reflexão e de planos, na prisão.

Assim, na maturidade dos seus 77 anos, Lula demonstra a força que se adquire nas intempéries. Ressurge – é disso que se trata, de um ressurgimento –, dono do seu próprio discurso, ciente de seu poder de ser ouvido e cônscio da sua responsabilidade de dizer. O que quer, o que precisa, o que não foi dito.

Bonito começar estocando o dedo na ferida da morte suspeitíssima de Sergio Vieira de Mello e seus 21 funcionários, que ousaram discordar e implementar em Bagdá uma política ligeiramente “desalinhada” com a Casa Branca.

Imprescindível externar suas condolências aos países atingidos pelas catástrofes climáticas, mas destacar que aqui, em seu país, os danos também se fizeram sentir, no Rio Grande do Sul.

“Naquela época (há 20 anos), o mundo ainda não havia se dado conta da gravidade da crise climática. Hoje, ela bate às nossas portas, destrói nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e impõe perdas e sofrimentos a nossos irmãos, sobretudo os mais pobres”.

Inquebrantável, expressou a sua confiança nos seres humanos e no poder de mudança na humanidade – ainda que ela não venha demonstrando muita boa vontade em mudar.

E falou dos desafios, sem personalizar o que ele próprio venceu. Resgatou a democracia em seu país, derrotou um golpe – em 8 de janeiro – derrotou nas urnas o fascismo e se impôs como presidente democrático. Na plateia, com os seus olhos de mau aluno, Arthur Lira murchou as orelhas, escorregou os olhos e aplaudiu. O que lhe resta? Ali a arena é do Lula.

Desancou com o capitalismo “selvagem” para usar um termo bastante explorado nos anos de 1970 pelo movimento estudantil. “Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade”.E com toda a autoridade do mundo, apontou o fosso criado por eles: “O destino de cada criança que nasce neste planeta parece traçado ainda no ventre de sua mãe. A parte do mundo em que vivem seus pais e a classe social à qual pertence sua família irão determinar se essa criança terá ou não oportunidades ao longo da vida. Se irá fazer todas as refeições ou se terá negado o direito de tomar café da manhã, almoçar e jantar diariamente. Se terá acesso à saúde, ou se irá sucumbir a doenças que já poderiam ter sido erradicadas.

Se completará os estudos e conseguirá um emprego de qualidade, ou se fará parte da legião de desempregados, subempregados e desalentados que não para de crescer”.

E descreveu o que o move: a indignação. Receitou que os demais líderes mundiais façam uso dela, para também entrar nessa luta, ao seu lado. Que se juntem a ele, se não souberem o caminho. “É preciso antes de tudo vencer a resignação, que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural”.

Destemido, impetuoso como nunca esteve – que bom se ele enfrentasse aqui, os generais golpistas com esta sanha! mas tem o Múcio… – arranhou a carne viva dos que exploram e se acomodam, acusando:

“Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo”.

E, finalmente, fez o relato da sua saga, sem tom de vítima, com o orgulho de quem a ultrapassou.

“Se hoje retorno na honrosa condição de presidente do Brasil, é graças à vitória da democracia em meu país. A democracia garantiu que superássemos o ódio, a desinformação e a opressão. A esperança, mais uma vez, venceu o medo. Nossa missão é unir o Brasil e reconstruir um país soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre. O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, com nossa região, com o mundo e com o multilateralismo. Como não me canso de repetir, o Brasil está de volta”.

Sim, o Brasil, do tamanho que for, com as cores que tem e os desafios nossos de cada dia, voltou e o aplaudimos nesse momento que nos sentimos de novo, na cena mundial, como cidadãos dignos e respeitados.

Escrito por:

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia

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