Milícia e a execução aos pés do redentor
A execução de quatro médicos num quiosque à beira mar, no Rio de Janeiro, chocou não só pela violência do crime, mas também por escancarar a condição de insegurança e abandono a que fomos relegados pela inação histórica do Estado, seja em matéria de segurança pública, seja no enfrentamento de mazelas sociais como um todo.
Se no campo da física já se provou que não existem espaços vazios, o mesmo também se aplica na quadra política. Aqui e, em especial na segurança pública, o vazio do Estado foi prontamente preenchido por grupos paramilitares, que, através da força, se apropriaram gradativamente do comando da administração de várias áreas das grandes cidades. Em uma evolução orgânica e progressiva, muitas vezes sob o manto das autoridades constituídas, esses grupos foram substituindo várias das funções do estado.
As milícias, versão atual dos grupos paramilitares, operam hoje uma rede que se estende e canibaliza todas as esferas da vida do cidadão que vive em sua área de poder. Dominam os aspectos mais corriqueiros da vida dos moradores, como fornecimento de gás, internet, energia elétrica, acesso ao solo (moradias), impondo taxações ilegais a todas as atividades econômicas realizadas nos seus espaços de controle. Vão além: produzem insegurança, para vender segurança e chegam ao ponto de definir o destino das vidas dos moradores.
O fato é que as milícias penetraram e contaminaram todo o tecido político e social brasileiro. Volto aqui no tempo para explicar a gênese desse estado de coisas violento ao qual chegamos.
Surgiram no país no início da ditadura militar, nos idos anos 60, os grupos paramilitares – os esquadrões da morte – foram evoluindo e se apropriando de espaços de sombra do poder público. Ou seja, foi nessas áreas negligenciadas pelo estado que prosperaram, se expandiram, até se estabelecerem de fato como poder, a partir dos anos 90.
Foram se validando socialmente, inclusive com a contribuição significativa da mídia policialesca, entusiasta do “CPF cancelado”, formando um senso comum de que caberia à milícia o “papel” de enfrentar aquilo que interesses hegemônicos externos elegeram como sendo o maior problema social do país e a raiz de todos os males: o tráfico de drogas nas favelas. É fato que a expansão das milícias está intimamente associada à guerra às drogas. Os milicianos são apresentados como provedores da segurança que o estado foi incapaz de proporcionar, os únicos preparados para enfrentar o narcotráfico nas comunidades periféricas. O “inimigo”, sempre o mesmo: o jovem preto periférico, numa reprodução infinita da desigualdade e disseminação do racismo estrutural.
O abandono estatal das regiões periféricas e suas comunidades, somado ao discurso de muitas autoridades que legitimam a atuação das milícias, consideradas “autodefesas comunitárias” ou uma espécie de “mal menor”, são a base do surgimento e expansão desse câncer metastático que hoje nos devora.
Nesse sentido, vale lembrar do miliciano Adriano da Nóbrega, que foi condecorado por Flávio Bolsonaro com a medalha de Tiradentes, na ALERJ e chamado por Jair Bolsonaro de “herói da PM”.
No celular de Silvinei Vasques, chefe da Polícia Rodoviária Federal na gestão Bolsonaro, há uma série de vídeos exaltando manifestações, após a vitória eleitoral de Lula, pedindo intervenção militar.
Hoje, as milícias estão profundamente enraizadas no tecido social. Tem braços na Justiça, no poder legislativo, nas polícias, nas igrejas, na chamada imprensa sensacionalista e, até pouco tempo, na própria presidência da república.
Através dessas relações, as milícias expandem seus territórios e impõem seu modus operandi sobre todos os aspectos das vidas dos habitantes das áreas que controlam, inclusive sequestrando iniciativas sociais. Muito já se falou sobre o controle desses grupos sobre imóveis da “Minha casa, minha vida”, que se apropriam, alugam e vendem. Tudo à margem da lei.
Situações como esta escancaram o fato de que as milícias, mais do que um poder paralelo, definitivamente substituíram o Estado, especialmente no Rio de Janeiro e avançam a olhos vistos em outros estados da federação. Crescem e se empoderam muito.
Dados do Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro, resultado de estudo realizado pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e o Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (GENI), revelam que apenas no RJ, as milícias cresceram a uma proporção de 387,3%, entre 2006 e 2021. São organizações criminosas lideradas por homens poderosos, ricos, politicamente influentes e impiedosos, que muito lembram os mafiosos da Sicília e da Cosa Nostra Americana, que emergiu dos bairros empobrecidos e guetos italianos, em Nova Iorque, nos anos de 1930.
Sob o governo Bolsonaro e os seus subprodutos eleitorais estaduais, a pseudopolítica de segurança, o avanço armamentista, os ataques às instituições, as milícias foram fortalecidas. A presença, na própria estrutura do governo Bolsonaro, de figuras entusiastas de grupos de extermínio e de conhecida proximidade com milicianos, mostrava a natureza e a matriz daquele governo. Lembro aqui de uma frase do ex-ministro da saúde, general Pazuello, que, desautorizado pelo “Don” Bolsonaro a comprar vacinas chinesas, afirmou: “É simples assim: um manda e o outro obedece.”
Foi este o estado de coisas que o atual governo herdou. Foi nesse contexto que ocorreu o crime bárbaro que vitimou os médicos, com o qual iniciei este artigo. Diante do legado bolsonarista de fortalecimento e expansão das milícias, cabe ao Estado implementar políticas públicas de combate a essas organizações criminosas. É uma equação difícil, mas de indispensável e imediato enfrentamento.