Lula e Fernando Haddad (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

Lula não devia explicações sobre a batalha fiscal “déficit x superávit”. Deu-as e o eco foi ruim: erro de comunicação

31 de outubro de 2023, 16:43

Mesmo quando dão entrevistas coletivas formais ou informais, presidentes da República têm de ter em mente que as perguntas são desimportantes: só será realmente relevante o que ele disser. Ou seja, o domínio da pauta é dele. Chefes de poderes republicanos devem sempre estar aptos a conversar com jornalistas, a abrir a agenda para um café a qualquer hora do dia, e não necessariamente em salões montados para que tudo pareça um pronunciamento solene. Isso devia ocorrer por aqui com periodicidade muito maior do que costuma acontecer. Encarando o dia a dia da comunicação palaciana como ele deve ser, é preciso que os ocupantes da cadeira presidencial, suas equipes de assessoria e seus ministros diretamente envolvidos na coreografia desses momentos de prestação de contas à sociedade por meio da imprensa (que cumpre, ali, seu papel de mediar as pretensões de Governo com os anseios da sociedade e tudo passado pelo prisma da vida real da política, a tal realpolitik) saibam que quem domina a pauta não dá resposta – mas, sim, pronuncia-se.

Presidentes da República fazem pronunciamentos mesmo quando respondem a perguntas. Pronunciamentos têm de ser pensados, esquadrinhados e lapidados para caberem dentro de objetivos e metas de Governo. Logo, têm de passar por um crivo mais ou menos assim: o que eu quero dizer? Por que dizer isso agora? Qual o movimento que provoco ao dizer tal coisa hoje? Como isso será compreendido por A, B ou C, que estarão na “audiência qualificada” do que direi e farão textos para impactar e “traduzir” o que tenho a dizer? Qual a estratégia e as armas que temos para neutralizar ataques advindos da má compreensão do que disse? E, por fim: posso dizer o quero dizer sem contextualizar? 

Na última sexta-feira, dia de seu aniversário de 78 anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu o Salão Leste do Palácio do Planalto para receber um grupo de jornalistas convidados diretamente pela Secretaria de Comunicação de Governo. O ponto de corte para a produção da lista de convidados foi escolher nas redações os nomes dentre os quais o ministro da pasta e seus assessores mais próximos têm maior afinidade. Acreditaram que isso bastava para que o ambiente estivesse sob controle de ruídos. Trataram de relaxar a caminho do café da manhã como se tudo fosse um convescote entre amigos destinado a celebrar a vida da maior e melhor personalidade política do País, ser único que poderia ter resgatado o Brasil do fundo do poço de uma trágica viagem em looping acelerado na direção do passado e do garroteamento da Democracia. Lula é tudo isso, sabemos todos. Ainda assim, uma comunicação profissional de Governo não podia ter deixando os flancos abertos para uma derrapagem do gênio da Política – nós temos, ele se chama Lula e despacha no 3º andar do Planalto – sem a existência de acostamento, guard rail e ambulância do SAMU à espreita para conter danos e restaurar a normalidade da pauta sem permitir que o acidente de percurso parecesse uma tragédia.

Lula ter dito que o seu Governo não tinha compromisso com déficit zero (e depois ele explicou, detalhadamente, sendo desprezado nesse ponto pela maioria dos jornalistas presentes, que podia ser -0,25% ou +0,25%, como se fosse uma espécie de banda fiscal flutuante) é de menor importância. O presidente da República ter dito aquilo sem estar a responder pergunta alguma, foi um erro. Não ter preparado com o ministro da pasta, com a equipe pública ou privada que monta as estratégias da Secom (ele dispõe das duas) denota uma certa soberba de auto-suficiência de várias partes e pouco profissionalismo na lida com a comunicação pública. Por fim, foi erro perverso e rotundo terem convocado às pressas Fernando Haddad, ministro da Fazenda, o mais hábil e mais comprometido integrante do Governo, a personalidade que sabe melhor do que ninguém o que Lula quer para o País e como o presidente enxerga a perversidade de nossas desigualdades e quais são os principais inimigos e obstáculos postos no caminho de quem se propõe a mitigá-las, convertendo-o em uma espécie de coordenador de atendimento do SAMU chamado a ressuscitar o corpo à beira da estrada.

Socorrista de múltiplas habilidades, advogado com mestrado em Filosofia e doutorado em Economia, professor nato, Haddad vestiu um imaginário macacão laranja do “SAMU de Governo” e esgrimiu um assertivo e honesto rol de argumentos em defesa dos compromissos que assumiu na tentativa de resgatar o Brasil da UTI em que ele foi deixado. Falou duro e direto, dando exemplos concretos do como e do porquê chegamos aonde estamos na crise fiscal e vem sendo intensamente e desonestamente cobrado por isso. 

Antes de sentar diante do grupo de jornalistas que testemunhou risonha e francamente a construção da escadaria por qual a crise escalou – desde a formação do argumento diáfano de “pedaladas fiscais” que foram usadas como ferramenta de manipulação para o impeachment sem crime de responsabilidade até a maquiagem engenhosamente planejada pela turma de Michel Temer para esconder os déficits por trás de um “teto de gastos” que arruinou e paralisou a máquina pública à guisa de responsabilidade para governar e a ruína absoluta do Estado com o consórcio farsesco formado por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes – o ministro da Fazenda havia debatido a fala de Lula com o próprio presidente e discutido a oportunidade dela com os colegas de ministério Paulo Pimenta (Secom) e Rui Costa (Casa Civil). A relação do trio é fria, distante e eivada por provocações pouco lisonjeiras. Lula admira Haddad, e vice-versa. O ministro da Fazenda sabe o que o presidente quis dizer na entrevista, que na verdade era pronunciamento e foi mal coreografada pela equipe palaciana. Mais além: Fernando Haddad saiu do Planalto para a coletiva em seu ministério irritado com a enésima constatação de que além de ressuscitar o compromisso com a perseguição ao menor déficit fiscal possível em 2024, e o ideal é que fosse zero, ele seguiria sendo vendido pelos ministros palacianos como uma espécie de mordomo incopetente do Governo – aquele que sempre tem alguma culpa quando algo dá errado e não cumpre suas missões direito. 

Queridas, queridos: é isso o que está acontecendo por dentro do Governo, e os jornalistas que não contam o caso como o caso é, ou têm o rabo preso com algum agente do mercado ou dentro de alguma sala palaciana.

Escrito por:

Jornalista

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