CPI deve usar métodos de Ustra para inquirir Pazuello na “Cadeira do Dragão”

18 de maio de 2021, 18:47


Por Luís Costa Pinto

“Dá porrada no Chico Lopes. Eu até sou favorável que a CPI, no caso do Chico Lopes, tivesse pau de arara lá. Ele merecia isso: pau de arara. Funciona! Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso (sic). E o povo é favorável a isso também”.
Jair Bolsonaro, abril de 1999 à TV Bandeirantes


O dia 26 de abril de 1999 marcou a História do Parlamento brasileiro como sendo aquele em que um depoente convocado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito saíra preso da sala de oitivas da CPI. Chico Lopes, que até 12 de janeiro daquele ano fora presidente do Banco Central e caíra em desgraça ao tentar implantar um sistema de flutuação do câmbio chamado “banda hexagonal endógena”, escutou em “teje preso!” histriônico da então senadora alagoana Heloísa Helena (à época no PT). Estava diante de um impassível Antônio Carlos Magalhães, presidente do Senado e aliado do presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Chico Lopes ofereceu o ombro para a condução de um segurança do Congresso e ficou sob custódia na sala da Polícia Legislativa por cerca de 12 horas.
O ex-presidente do Banco Central recusou-se a assinar o termo de compromisso com a verdade para com seus inquisidores na CPI dos Bancos Marka e FonteCindam. A Comissão apurava a ocorrência de um esquema de informações privilegiadas que teriam sido fornecidas às duas instituições de pequeno porte do mercado financeiro do Rio de Janeiro no curso da desvalorização do Real durante a implantação do malsucedido sistema de bandas de flutuação cambial. Entre a parvoíce e a incredulidade, o País assistia ao fim do segundo mandato de FHC, o presidente eleito pelo Real que garroteara a inflação e fora reeleito por força de um estelionato eleitoral: ter segurado a moeda nacional sobrevalorizada por tento tempo arruinara as bases do plano econômico. A prisão humilhante do homem que havia comandado o BC e que fora um dos ilustres integrantes da equipe de planejamento e execução do Real abalara de vez a credibilidade de um presidente reeleito que havia acabado de perder o futuro Ministro do Desenvolvimento, Luiz Carlos Mendonça de Barros, na esteira do escândalo dos grampos nos telefones do BNDES durante a privatização do sistema brasileiro de telefonia.
Era esse o contexto político do País quando o então deputado Jair Bolsonaro cometeu a frase em epígrafe, dando vezo aos maus bofes que lhe são característicos. Nesta quarta-feira, a partir das 9h30, quando o general Eduardo Pazuello repousar os cotovelos sobre a mesa em sentam os convocados para oitivas na CPI do Genocídio e descansar sobre eles os ombros sobre os quais carrega três estrelas do Exército Brasileiro, seremos contemporâneos de uma rara oportunidade de assistir à História transcorrer em uma espécie de looping demoníaco. Há muitos demônios a exorcizar neste caso.
Agora, graças a uma conjunção tão infeliz quanto infernal, Bolsonaro é o presidente do Brasil e foi eleito com o apoio ostensivo do Exército – braço essencial em sua atrapalhada e malsucedida tentativa de se fazer respeitar aos gritos boçais à guisa de possuir um projeto para o País e uma estratégia organizada para implantá-lo. A condução estúpida do Governo Federal no curso da pandemia por coronavírus leva-nos a testemunhar um cenário de catástrofe bíblica: ao menos 440.000 brasileiros morreram em consequência da Covid-19. Mas, estima-se uma subnotificação em 30% nessa estatística tétrica. O sistema público de saúde está em colapso e a rede privada de atendimento em saúde – planos de saúde e redes hospitalares privadas – seguem tentando tirar casquinhas financeiras da tragédia. Em razão da catástrofe sanitária e humanitária, a economia nacional está à deriva e se houver um freio à disseminação do vírus até o fim desse ano, somente em 2032 iremos recuperar os níveis de pujança econômica verificados em 2012 (ano em que o Brasil era o melhor lugar no mundo para se viver).
Jair Bolsonaro e seus filhos Flávio, Eduardo e Carlos jamais esconderam ter por herói o facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra. Sob a patente de coronel e usando o codinome “Doutor Tibiriçá”, Ustra comandou o Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operação de Defesa Interna (Doi-Codi) do II Exército entre 1970 e 1974, auge da repressão selvagem durante a ditadura militar. Em 2008, tornou-se o primeiro militar brasileiro a ser condenado pela Justiça pela prática da ditadura. Ainda assim, mesmo reformado, continuou politicamente ativo nos clubes militares que reúnem oficiais de pijama pelo País – velhos provectos que adoram tecer loas à ditadura aos métodos criminosos usados por ela para deter uma “marcha comunista” que só os loucos e os muito mal-intencionados viam. Hamilton Mourão, vice-presidente de Bolsonaro, general da reserva (ou seja, milico de pijama) trilhou os caminhos de Ustra nos clubes militares e também confessa ter o “Doutor Tibiriçá” como um herói pessoal. Em 2018, durante entrevista à GloboNews, Mourão disse textualmente que o assassino e torturador era um ídolo para si.


“Eu fui espancada por ele, pelo Coronel Ustra, ainda no pátio do Doi-Codi. Ele me deu um safanão com as costas da mão, me jogando no chão, e gritando ‘sua terrorista’. E gritou de uma forma a chamar todos os demais agentes, também torturadores, a me agarrarem e me arrastarem para uma sala de tortura”.
“Ele levou meus filhos para uma sala, onde eu me encontrava na cadeira do dragão [instrumento de tortura utilizado na ditadura militar parecido com uma cadeira em que a pessoa era colocada sentada e tinha os pulsos amarrados e sofria choques em diversas com fios elétricos atados em diversas partes do corpo]. Eu estava nua, vomitada, urinada, e ele leva meus filhos para dentro da sala? O que é isto? Para mim, foi a pior tortura que eu passei. Meus filhos tinham quatro e cinco anos de idade. Foi a pior tortura que eu passei”
Maria Amélia Teles, jornalista, militante do PCdoB


Cadeira do Dragão: Assento que se assemelhava uma cadeira de barbearia. Recortes de folhas de zinco eram colocados em pontos estratégicos do encosto, dos braços e da parte em que repousaria a genitália dos interrogados quando eles estivessem sentados. As folhas de zinco estavam ligadas a fios elétricos conectados a interruptores com graduação de voltagem. Assim, os artesãos das sevícias dos porões militares produziam uma “cadeira elétrica caseira” usada nos interrogatórios do Doi-Codi para extrair confissões dos adversários políticos do regime militar. As roupas dos interrogados eram arrancadas e antes de sentar-se na Cadeira do Dragão ele passava por um “corredor polonês”: militares e alguns amigos que tinham prazer em assistir às sessões de tortura espancavam a vítima no caminho para o porão em que se encontrava a cadeira. O torturado estava sempre algemado e encapuzado. Ao ser obrigado a sentar, nu ou nua, tinha as pernas amarradas por trás dos pés da Cadeira do Dragão. Os braços eram crivados no zinco. O capuz era retirado. Pelas costas do “depoente” de quem se pretendia extrair uma “confissão”, com voz sádica, um militar narrava como se daria a tortura e quais as prováveis consequências dos choques. Muitas vezes, dizem diversos sobreviventes dessa Casa do Terror, o narrador era Carlos Alberto Brilhante Ustra. Pequenas descargas elétricas eram dadas durante a narrativa, para acrescer o pânico nos interrogados. Fios desencapados eram introduzidos na uretra, no prepúcio ou na vagina de homens e mulheres. Caso os sustos elétricos não surtissem efeito, punha-se um balde metálico na cabeça dos presos políticos – ele potencializava as descargas elétricas.

Trecho de reportagem do El País Brasil cuja íntegra pode ser lida clicando aqui:
“Adriano Diogo acabava de sair do banho quando seu apartamento, em São Paulo, foi invadido por militares com metralhadoras. Era março de 1973, auge de ditadura. Diogo só teve tempo de vestir uma cueca e assim foi levado pelos agentes. Encapuzado, o colocaram dentro de um carro e fizeram-no segurar nas mãos o que ele deduziu ser uma bomba. Chegando ao destino, atravessou um corredor polonês, onde apanhou de guardas enfileirados até chegar em alguém que começou a lhe bater com uma metralhadora: “Você é amigo do Minhoca [apelido de Alexandre Vanuchi, amigo de Diogo], acabei de mandar ele para a Vanguarda Popular celestial e é pra lá que vou te mandar também, seu filho da puta”, gritava seu algoz.
Aos 67 anos, Diogo se lembra de cada palavra que saiu da boca do comandante Carlos Alberto Brilhante Ustra. Até então, não sabia de quem havia apanhado, mas descobriria rapidamente. Quando Ustra o deixou, Diogo perguntou a outro guarda que estava por perto. “Onde é que eu tô?” “Aqui é a antessala do inferno”, avisou o agente, de modo sarcástico, antes de mandá-lo sentar numa cadeira de dragão. Nu, colocaram eletrodos nas suas genitálias, boca, ouvidos, e com choques elétricos ordenavam suas confissões para entregar companheiros.”


Em 1972 o jornalista Carlos Garcia, chefe da sucursal de O Estado S Paulo no Nordeste, foi preso no Recife e levado para a sede do IV Exército na capital pernambucana. Convictos de que o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, era mensageiro e líder de um movimento comunista que levantaria o País, e que a imprensa era a porta-voz da conspiração urdida em Moscou, os obtusos chefetes militares da central nordestina de tortura promoveram uma sessão de espancamento contra Garcia antes de levá-lo para o pau-de-arara. Diferente da Cadeira do Dragão, mas, artefato idealizado pelas mesmas mentes demoníacas dos porões da ditadura militar, o pau-de-arara consistia numa espécie de poleiro no qual o indivíduo do qual se queria arrancar uma confissão era amarrado nu ou nua como se fosse uma ave zonza em razão dos maus tratos. No caso de Garcia, conectaram um fio elétrico na sua uretra e a outra extremidade em um dos ouvidos. Desfigurado pela dor das agressões, cego pelo sangue pisado que fechava seus olhos, o jornalista foi obrigado a responder ao interrogatório sádico dos militares que desejavam saber como era o esquema comunista comandado pelo religioso. Garcia morreu há um mês, vítima de Covid, aos 87 anos, coberto da admiração e do respeito de uma legião de amigos.



Nesta quarta-feira, 19 de maio de 2021, o general de três estrelas Eduardo Pazuello sentará diante de uma tribunal civilizado e fruto da restauração democrática: onze senadores que integram uma Comissão Parlamentar de Inquérito e tentam decifrar como e por que o Brasil está a perder a guerra para o coronavírus. Por que a vacinação dos brasileiros é tão lenta? Por que o governo federal relutou em abraçar a compra e a produção local de vacinas, uma vez que vacinas em massa é a única saída para a vitória contra a peste que nos abala e que já matou impensáveis 440.000 brasileiros – numa cifra subestimada? Por que o Ministério da Saúde, entregue a Pazuello durante a pandemia, não atuou a favor da saúde dos brasileiros? De quem eram as ordens para que laboratórios estatais – inclusive militares – do País produzissem cloroquina e distribuíssem ivermectina, medicamentos ineficazes contra o Covid-19 e que agravam determinados quadros clínicos, em detrimento da produção de medicamentos para kits de intubação e de distribuição de oxigênio a cidades que viram sua rede de saúde colapsar? Por que o Ministério da Saúde, sob o comando do general Pazuello, não adotou regras rígidas de distanciamento social e uso de máscaras que poderiam ter reduzido em muito a disseminação do vírus letal?
Como ainda está na ativa na qualidade de integrante do Exército brasileiro, Eduardo Pazuello tem obrigação para com a sua honra de militar – se é que isto lhe restou despois da passagem inepta por esse governo incompetente e desqualificado – de falar a verdade. Não estará, certamente, submetido aos métodos abjetos, desumanos, facínoras de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o Doutor Tibiriçá, herói da quadrilha dos Bolsonaro e do vice-presidente Hamilton Mourão. Melhor esquecer os métodos inimagináveis dos porões da ditadura e seguir com o rumo civilizado que os senadores de oposição têm dado às suas sessões inquisitoriais. Quem sabe, sem estar submetido às sevícias da Cadeira do Dragão e do pau-de-arara, Pazuello sente-se mais à vontade para revelar a verdade aoverdade ao Brasil e aos brasileiros? Merecemos.


Escrito por:

Jornalista

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