Ciro está a se afogar no pântano do bolsonarismo

7 de abril de 2021, 12:54

Por Luís Costa Pinto

– Senta aí me conta uma coisa – pediu-me Tasso Jereissati, indicando a cadeira diante de sua espaçosa mesa de trabalho no escritório da holding familiar Calila, em Fortaleza.
Passava um pouco das 15h do dia 7 de outubro de 2002. Tasso acabara de ser eleito senador para cumprir um primeiro mandato em Brasília. Encerrava um ciclo de três mandatos de governador do Ceará. Atendi ao pedido. Achei que ele seguiria com a conversa iniciada às 11h, quando aceitei fazer a campanha de 2º turno de Lúcio Alcântara (PSDB) ao governo do estado. Durante o almoço analisáramos os porquês da acachapante derrota de Ciro Gomes no 1º turno presidencial – terminou em quarto lugar, com 10 milhões e 880 mil votos, atrás até de Anhotny Garotinho, que concorria pelo PSB e obtivera 15 milhões de votos.
– Conte-me, depois desses meses de convívio intenso com Ciro… – seguiu Tasso – …vocês se conheciam desde quando mesmo?
– 1990 – respondi. – Foi você quem nos apresentou, quando ele era candidato à sua sucessão no primeiro mandato.
– Pois bem. Depois desse tempo de convívio tão próximo na campanha presidencial, você diria que Ciro é o homem mais inteligente que você já conheceu; ou é o político mais mentiroso com o qual você já conviveu?
Não esperava a pergunta. Ela veio acompanhada de um sorriso sarcástico que o senador tucano sabe dar nas conversas reservadas, quando quer analisar a fundo alguns problemas. Ganhei alguns segundos para pensar com o silêncio que impus. Deixava claro que estava pensando na melhor resposta e tentava adivinhar a intenção da pergunta.
– É o mentiroso mais inteligente com o qual já cruzei na vida – devolvi enquanto olhava direto nos olhos dele.
Rimos à larga. Depois, ele concordou:
– Também acho. É exatamente isso. Mas, é um homem de boa-fé – disse Tasso, pontuando o fim daquele tópico e abrindo nova agenda política.
Uma contextualização mais detalhada desse papo e outras considerações sobre o tema integram o volume 3 de “Trapaça – Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro” que estou a escrever. Entretanto, ante a proposta bizarra feita por Ciro Gomes, para que o ex-presidente Lula deixe a cena política atual e não seja candidato em 2022, ocorreu-me contá-lo na forma de diálogo romanceado e à guisa de introdução para o presente artigo que pretende falar de política.
Reabilitado para a disputa política – ao menos até o julgamento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no plenário do Supremo Tribunal Federal, marcado para a quarta-feira 14 de abril – o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva rapidamente se converteu em polo da cena de pré-campanha presidencial. De certa forma, os fatos se impuseram até mais rapidamente do que a previsão. Isso foi antecipado aqui e aqui.
Em curto período, inferior a um mês, Lula deslocou o eixo do debate presidencial e passou a restaurar pontes com diversos setores da sociedade brasileira. O “centro liberal-democrático” no qual Ciro Gomes crê navegar passou a ter por única meta possível disputar votos e preferências eleitorais com um Jair Bolsonaro depauperado de popularidade e desacreditado em suas promessas. Caso, claro, ele permaneça na condição de elegível para um segundo mandato em 2022 depois de ter desempenho porco, trágico, aviltante e genocida no curso deste primeiro mandato que ora destrói o País. Hoje, o ex-presidente do PT lidera as intenções de voto já no primeiro turno em pesquisas divulgadas pelas empresas PoderData (Poder360), Ipespe (XP) e IPE (mbl). Em cenários de segundo turno, Lula derrota qualquer nome posto na cédula.
Nas últimas semanas, e olhando para o julgamento de 14 de abril no STF, o petista tratou de esmerilhar o florete de espadachim que usa para atingir com precisão todos os balões de ensaio lançados com o objetivo de tirar-lhe credibilidade eleitoral. Não à toa, luas-pretas do “mercado financeiro”, esta entidade que não tem exércitos, porém, financia mercenários, deixaram de economizar elogios ou argumentos airosos para definir ou relembrar a passagem de oito anos de Lula na Presidência. De Delfim Netto a Marcos Lisboa, passando por Armínio Fraga a Luís Stuhlberger, em artigos, entrevistas ou palestras por vídeo, foi uma sucessão de envergonhados mea-culpa ou explicações contextualizadas sobre como era bom o Brasil de 2003 a 2012 – ressalvada a lentidão para correções de rumo.
O “mercado financeiro” e seus porta-vozes distribuídos nas trincheiras da mídia tradicional, de alguns sites alternativos, da sociedade civil e dos conselhos de empresas médias e grandes, além do Parlamento e até do Judiciário, ajudam a formar opinião e a dissipar as nuvens cinzas-chumbo.
O drama de Ciro aumenta à medida que esses formadores de opinião da banca são chamados a dizer o que acham dele: detestam-no. E o detestam justamente pelos defeitos que ele começou a revelar em 2002: não é confiável. Além disso, é turrão.
Naquela campanha de 2002 que terminou por consagrar Lula, o ex-governador Tasso Jereissati havia mexido céus e terras entre seus amigos da banca para pôr o economista José Alexandre Scheinkman à frente da equipe que estruturava um programa de governo “cirista”.
À época, o brasileiro Scheinkman chefiava o Departamento de Economia da Universidade Princeton, onde lecionavam sete vencedores do Nobel de Economia. Ciro Gomes não escutava o acadêmico. Pior que isso: destratava-o em reuniões, evitava agendas com ele. Colocou Mangabeira Unger, professor de Harvard, para liderar as mesas de debates. Percebendo-se um estorvo, José Alexandre Scheinkman, certa tarde, marcou um voo de volta para Nova York e nem deu adeus ao candidato do PPS (ex-PCB) a presidente da República.
Nos últimos dias, todos os formadores de opinião da Avenida Faria Lima e alhures, além dos principais executivos de grandes corporações, passaram a lembrar as dificuldades de relacionamento que sempre tiveram com o ex-governador e ex-ministro cearense quando precisaram interagir com ele em algum momento específico. Ciro fez uma leitura errada da cena. Como adora ouvir a própria voz e despreza ponderações, convenceu-se de que seria o verniz “de esquerda” que asseguraria viabilidade eleitoral à direta liberal-democrática brasileira (DEM, MDB, Solidariedade, até PSDB). Não percebeu a tempo que a permanência de Lula no jogo de 2022 – confio piamente que assim se dará – deslocava o problema de competitividade para o espectro do centro à direita e extrema-direita.
Se fosse menos verborrágico e mais cerebral – ou seja, se gostasse de estudar mais e segurasse seu vezo performático – Ciro veria que Bolsonaro é quem tem de ir à luta para estar nas urnas de um eventual segundo turno. Logo, são os eleitores com viés ou cores explícitas de direita que estão em disputa. Do centro à esquerda (e é balela que exista extrema-esquerda no Brasil), os projetos eleitorais e de País estão começando a perfilar e a se alinhar com Lula e com o PT. Agora, a direita liberal-democrática não precisa de um verniz de esquerda para chegar ao eventual segundo turno de 2022. Precisa, isto sim, pescar nas águas turvas e pestilentas do bolsonarismo para extrair do pântano um percentual razoável de almas sebosas, mas arrependidas, capazes de manter aceso o discurso da direita.
Ciro jamais caberia nesse figurino. O ego dele é quadrado e não é gasoso. O tubo por onde passam as convicções gelatinosas da direita liberal-democrática é cilíndrico. João Doria também não se encaixa na maquete – desta feita, por outras razões. Bolsonaro tratou de desconstruir tão virulentamente o governador de São Paulo, que um eleitor bolsonarista dificilmente migraria para ele como nome do centro. O vice-presidente Hamilton Mourão, caso acorde invocado qualquer dia desses e, como general da “Turma de 1975” de Agulhas Negras resolva reivindicar o quepe do capitão da “Turma de 1977” sob o discurso de “união nacional” e de “manutenção da ordem e da paz social”, pode sê-lo. Outro militar, o general da reserva Santos Cruz, idem. O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta também. ACM Neto, igualmente, assim como o governador gaúcho Eduardo Leite, que não tem os desdouros acumulados por Doria. Ou outros nomes que surjam a partir de possível e provável convocação de Mourão a um “governo de unidade nacional”, com ele à proa.
Dando nome à hipótese: e se Mourão decide virar a mesa do Planalto ante as evidências que comprovam a tragédia brasileira e a participação direta de Bolsonaro no genocídio que ora se pratica por aqui, comprometer-se a levar o barco até 2022, convocar a sociedade – inclusive a oposição – para um governo de transição e união e convidar, por exemplo, um Rodrigo Maia para o Ministério da Fazenda? Caso use suas habilidades para o diálogo, e ele as tem, e seja uma espécie de reencarnação de Fernando Henrique Cardoso nessa especulação hipotética, Maia ou qualquer outro se torna competitivo do centro à direita. Composições de chapa estão abertas com esse cardápio de nomes.
Enquanto a paisagem que ornará a rinha eleitoral está sendo montada, é Bolsonaro quem afunda cada vez mais na lama do pântano no qual se criou politicamente. Ele ainda corre o risco de assistir impotente ao surgimento de um nome capaz de dividir consigo a extrema-direita, um outsider como o palhaço youtuber Danilo Gentili, por exemplo. Se isso ocorrer, a partir do traço, qualquer ponto percentual que tal extremista roubar de Bolsonaro navegando no bolsonarismo à deriva, será determinante para excluí-lo da disputa pela direita – isso, claro, sempre ressaltando a condicionante: se ele resistir até 2022 no cargo e como nome competitivo, pois a conta desumana dos crimes de genocídio que pratica pode chegar antes das urnas.
A tempestade perfeita que devasta tragicamente o Brasil e mata os brasileiros – com o vírus, de fome, de depressão, à mercê de uma rede de saúde depauperada – afoga no mesmo pântano tanto Bolsonaro quanto Ciro Gomes. São personagens diferentes, mas ambos acreditam nas próprias performances pérfidas e afundam abraçados a elas.

Escrito por:

Jornalista

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