(Foto: Agencia Brasil | Reprodução)

Bolsonaro desata laços de confiança com o Chile estreitados pela política de Celso Amorim

29 de agosto de 2022, 20:43

Todos os “laços de confiança” construídos durante anos pelo Itamaraty e sua chancelaria, retratados com farta documentação, anotações pessoais e a memória prodigiosa do embaixador e ex-chanceler, Celso Amorim, em seu livro recém-lançado – em que fez uso da expressão para o título de sua obra -, foram desastrosamente desamarrados por Bolsonaro em alguns minutos.  

 Usando de declarações, estapafúrdias e eivadas de desconhecimento do que sejam as relações internacionais, o candidato do PL – ignorando que é também presidente do país -, falou no debate da noite desse domingo (28/08), promovido por UOL, Folha de S. Paulo, Band e TV Cultura sobre os governos de esquerda na América Latina, causando desconforto no Chile e em seu presidente, Gabriel Boric. Imediatamente o governo chileno convocou o embaixador do Brasil em Santiago, “para consulta”.

Tido nacional e internacionalmente como o melhor chanceler do Brasil, Celso Amorim classifica a situação como aquilo que ela de fato é: “muito grave”. Pela tradição nas relações exteriores, esse é o gesto de maior simbolismo na convivência entre os países, explicou. “Basta dizer que em 9 anos e meio que exerci a chancelaria eu só fiz uso dele uma vez”.  

 Na fala que agrediu os demais países vizinhos, durante o debate, Bolsonaro usou os clichês anticomunistas de sempre. Para o Chile, porém, e seu presidente, reservou acusação fantasiosa, sem fundamentos ou provas. Bolsonaro acusou Boric de ter ateado “fogo em metrôs”.

Tendo como alvo o seu principal oponente nas eleições deste ano, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), disse ontem: “Lula apoiou o presidente do Chile também, o mesmo que praticava atos de tocar fogo em metrôs lá no Chile. Para onde está indo o nosso Chile?”.

O governo chileno, como era de se esperar, emitiu nota citando o presidente brasileiro e repudiando suas falas: “são inaceitáveis e não estão de acordo com o tratamento respeitoso devido aos chefes de Estado ou com as relações fraternas entre dois países latino-americanos”, protestou.

 Na avaliação do ex-chanceler, fazendo a ressalva de que está apenas especulando, é possível que “O embaixador não volte ao Chile antes do término das eleições”, avalia, tamanho o constrangimento causado pela fala de Bolsonaro.

 Na abertura do capítulo reservado ao seu trabalho na relação com o Chile, em “Laços de Confiança”, Amorim resgata uma expressão atribuída ao Barão do Rio Branco, para definir a ligação entre os dois países: “uma amizade sem limites”. Em seu texto, escreveu: “O jogo de palavras nela contido exprime, de modo feliz, a combinação entre dois fatores: a distância física e a excelência das relações bilaterais”.  

É do que estamos falando e que está sendo destruído pela inabilidade das declarações irresponsáveis do atual presidente. “É claro que o limite, que é a fronteira, sempre pode também ser fonte de problema. Então é uma amizade enorme e sem atritos. E ele consegue criar um atrito gratuito”.  

 O chanceler destaca: “o Boric não fez nada. E o Brasil nunca teve nenhum problema com o Chile. Até na época das ditaduras, elas coincidiram. A do Pinochet (Augusto de 1973 a 1990) durou um pouco mais, a gente esfriou nesse período, mas não brigou… O Brasil nunca brigou, enfim, eu não me lembro de nenhum contencioso entre Brasil e Chile”, reexamina, complementando: “chamar para consulta é uma coisa séria e rara. Muito difícil. Você não faz toda hora. Então, realmente ele acusou o golpe no bom sentido. Eles se sentiram ofendidos e retiraram o embaixador por algum tempo, mas de qualquer forma é uma situação de desconforto”.  

 Para o chanceler, os ânimos só seriam amainados caso o governo brasileiro fosse lá, se desculpasse, “coisa que não me parece provável que ele faça. Trata-se de uma briga gratuita. Ele não se dá com ninguém. Ele foi nomeando todos da América Latina, praticamente. Absurdo”. E lembrou que Bolsonaro falou mal também do presidente da Argentina, Alberto Fernandez, por ter visitado Lula na prisão.

“O único que ele não falou foi da Bolívia. Esqueceu. Ele pegou quatro países – Chile, Venezuela, Argentina e Colômbia -, de grande importância na região. Eu acho que é porque ele já tinha uma relação difícil com a Bolívia, até porque há sérias acusações suspeitas sobre a participação do Brasil naquele golpe (2019/2020). Golpe que durou um ano. Imagine. Da Venezuela ele fala dessa maneira, Colômbia também ele critica, fala que o presidente vai liberar as drogas… Ele é irresponsável para com o país. É uma total irresponsabilidade. Acusa gratuitamente, sem que o país nos tenha feito nada”, reagiu Amorim.  

“Seria diferente se o Chile tivesse feito alguma coisa com uma empresa brasileira, ou tivesse prendido um brasileiro, mas não houve nada disso. Ele ataca gratuitamente para falar para a sua bolha e atingir o Lula, seu adversário político. E com isso ele se indispõe e indispõe o Brasil com integrantes importantes da região”.  

 A resposta de Boric foi dura. Além de chamar o embaixador do Brasil para consulta, em seu comunicado, apontou: “O uso político da relação bilateral para fins eleitorais, baseado em mentiras, desinformações e deturpações, corrói não apenas os laços entre nossos países, mas também a democracia, prejudicando a confiança e afetando a irmandade entre os povos”.

 Boric, de 35 anos, é ex-líder estudantil e o presidente mais jovem da história de seu país. Sua vitória representa uma guinada à esquerda e rompeu com três décadas de alternância entre os partidos de centro desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet, em 1990. Por suas posições política, Bolsonaro se recusou ir à posse de Boric e enviou seu vice, Hamilton Mourão (Republicanos).

 Em “Laços de Confiança”, o livro que reúne notas sobre as suas atividades com os vizinhos da América do Sul, Amorim escreveu: “alguns temas são dominantes nas minhas anotações sobre o Chile. Ao longo de vários governos, sofreria dois tipos de atração: o modo liberal herdado de Pinochet impulsionaria Santiago a acordos de livre-comércio com países desenvolvidos, notadamente com os Estados Unidos. Isso, naturalmente, dificultava uma integração mais profunda, como a do Mercosul”. Ao mesmo tempo, prossegue, “os governos chilenos à época da Concertaciónbuscavam aproximar-se do Mercosul político”. E registrou também: “Em dois outros temas, que se desenvolveram em 2003/2004, o Chile revelou-se um parceiro valioso. Nas negociações da Rodada de Doha da OMC, o Chile integrou o G-20, liderado pelo Brasil”. Essa delicada tessitura foi urdida por Amorim, para manter a paz nas relações que Bolsonaro agora tenta destruir.

Apoie a iniciativa do Jornalistas pela Democracia no Catarse

Escrito por:

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *