
As Neves do Cariri
A caminhada ia ser longa e exaustiva. A neve que se estendia até a linha do horizonte prometia uma jornada difícil mesmo para um nordestino de estirpe. Afinal, ele, seu embornal e Severino, o jegue companheiro tinham que chegar até o litoral fugindo da moléstia que atacava a região sobretudo naquele período de inverno cruel. Deixou a família encolhida pelo frio na porta de casa e, apesar do fogo aceso, a temperatura não passava dos 3 graus negativos. Marilda, sua mulher e os meninos Evaldo, Evanildo, Evaristo e Eveline acenavam enquanto sopravam as mãos para enganar o frio cortante que aquela hora do dia era impiedoso.
Montou delicadamente Severino e partiu. As pegadas do animal na neve revelavam ser impossível prever um final. Tinha que chegar em Fortaleza no menor tempo possível. Sua família estava fechada em casa, não só por causa do inverno implacável mas também para que não se contaminasse com o vírus que se alastrava.
A população daquele pedaço do sertão cearense seguia a risca as regras que o Ministério da Saúde estabelecia para os povos do hemisfério norte. O inverno haveria de passar e com isso , certamente, o pico da doença recuaria. Severino carregava seu dono como se seu destino fosse mesmo aquele há muitos séculos. Escrever na neve a história de um povo sofrido que além da falta de trabalho tinha que sofrer durante meses com as temperaturas baixas e a perspectiva tão vazia quanto o cenário branco que se espreguiçava sob o céu cinzento.
E lá ele se foi. Quando deixou de avistar a fumaça que saia da chaminé da sua casa olhou finalmente para frente e teve a real dimensão do que o aguardava. O frio cortava seus lábios e o vento tentava penetrar sua roupa de couro feita pelo avô nos tempos que o nordeste viveu a grande nevasca. Lembrava do velho sertanejo e cantarolava a velha canção que aprendera em volta do fogo nas noites gélidas da caatinga cearense. “Só deixo o meu Cariri no último dos pau de arara”. Sorriu discretamente para não cortar mais os lábios com o vento e lembrou que o Pau de Arara transportava e alimentava o sonho do nordestino de chegar ao sul tropical e quente enquanto sofria as baixas temperaturas do sertão.
A noite chegou fria e insensível como todas as outras 24 noites seguintes. Sua comida congelada pela baixa temperatura resistiu o tempo certo. Quando o vigésimo quinto dia amanheceu ele viu do alto do morro o mar que brilhava com a luz do sol. Tirou parte das roupas quentes que vestia, olhou para o céu e deixou o sol acariciar sua pele. Finalmente, com o mês de junho, o verão chegava.
Lembrou das palavras do ministro da saúde e sorriu esperançoso, pronto para enfrentar os dias que viriam pensando na sua família que aguardava seu retorno com o bolso cheio de esperança e os 600 reais que ele viera buscar na Caixa Econômica de Fortaleza.