A urgência do resgate institucional das Forças Armadas
O relatório da CPMI do 8 de janeiro, aprovado nesta semana, aponta o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) como responsável intelectual pelos atos terroristas ocorridos em Brasília. Além do ex-presidente, o relatório pede ainda o indiciamento de outros 30 oficiais do núcleo duro do ex-governo militarizado. Penso aqui que a quantidade de militares a serem indiciados parece tímida, diante do envolvimento das três forças, direta ou indiretamente, no projeto de esgarçamento do regime democrático de direito.
Derrotados nas urnas e na tentativa golpista, muitos dos militares voltaram para os quartéis carregando sobre si a frustração de uma intentona fracassada. Que a sociedade não espere arrependimento! Boa parte do oficialato brasileiro, seja nas forças armadas, seja na estrutura das forças policiais, admira e reproduz a ideologia fascista. Que o digam as mensagens encontradas no celular de Silvinei Vasques, ex-diretor geral da Polícia Rodoviária Federal: fotos dos ditadores Adolf Hitler e Benito Mussolini, do clã Bolsonaro e outras que externam um verdadeiro culto às armas. Tudo isso no aparelho celular do ex-diretor da PRF, em cuja gestão foi extinta a Comissão de Direitos Humanos da PRF e que foi marcada por operações tenebrosas. Lembro aqui de uma delas, que ficará gravada eternamente em nossa coleção de barbáries: em plena luz do dia e aos olhos de todos, a execução de um cidadão em uma gambiarra de câmara de gás improvisada – símbolo de uma perversidade sádica reinventada.
Enfim, esse espírito de pulsões violentas, seja contra cidadãos, seja contra a democracia, que tem permeado parte expressiva das forças policiais e militares, embora venha de longe, foi fortemente alimentado na última década.
Para combater a politização nos quartéis, o governo enviou ao Congresso Nacional uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que criará regras para proibir que militares da ativa se filiem a partidos políticos e disputem eleições.
Mas você acredita, caro leitor, que essas medidas irão conter o avanço de ideias totalitárias que foram e continuam sendo inculcadas na mente de estudantes da academia militar?
A ideologia fascista, que nunca esteve tão viva entre parte dos setores militares, seguirá sendo reproduzida, entrando, quando muito, num período de hibernação. Por conta disto tudo, é fundamental a responsabilização e punição efetiva daqueles que, fardados ou não, se colocaram na linha de frente da batalha contra o estado democrático de direito. Antes de tudo, é uma urgência democrática e histórica.
É preciso dizer, no entanto, que a questão ideológica já não é mais o pior problema nas nossas forças armadas; embora o aparelhamento ideológico tenha sido crucial para que chegássemos ao ponto sobre o qual passo a discorrer. Não é segredo, e os fatos têm demonstrado, que as forças armadas e o bolsonarismo se entrelaçaram e se mobilizaram mutuamente, em uma relação que viabilizou a eleição e influenciou fortemente o ex-governo, do qual militares, inclusive da ativa, ocuparam mais de 6000 cargos na máquina administrativa. Isso de um governo, lembremos, cujo presidente não apenas normalizava as milícias, como as defendia explicitamente, e cujo clã condecorou. Um deles, Adriano da Nóbrega, recebeu a maior condecoração do poder legislativo fluminense, a medalha de Tiradentes, na cadeia.
O fato é que essa convivência perniciosa e promíscua de setores das forças armadas com o bolsonarismo nos custou a aproximação de militares das forças armadas com o que o existe de mais pernicioso na política brasileira, em especial, no bolsonarismo: a milícia e o crime organizado. Uma junção extremamente explosiva e perigosa. A suspeita é de que militares estão sendo cooptados por organizações criminosas.
Em 2019, o sargento da aeronáutica Silva Rodrigues foi preso na Espanha, com uma carga de 39 quilos de cocaína, transportados em um avião da comitiva do ex-presidente Jair Bolsonaro. A droga, de valor estimado em mais de 8 milhões de reais, se transformou num constrangimento político maiúsculo para o Brasil e aproximou ainda mais as suspeitas da proximidade do ex-presidente com a milícia e o crime organizado.
Na semana passada, 480 militares foram aquartelados em um quartel em São Paulo numa investigação sobre o desvio de armas de guerra altamente letais: 13 metralhadoras com capacidade de disparar 550 tiros por minuto e 8 fuzis de combate, que podem perfurar blindados e acertar alvos a até 2,5 quilômetros. Esse pequeno arsenal pesa mais de quinhentos quilos e, ainda assim, foi retirado do quartel sem chamar a atenção. Segundo apuração feita pelo G1, o armamento teria sido comprado pelo Comando Vermelho, uma das mais perigosas organizações criminosas do país. Os militares envolvidos na transação podem ter recebido cerca de 200 mil reais por cada metralhadora.
Na quinta-feira (19/10) a polícia civil do Rio de Janeiro, com a mesma eficiência que desvendou a execução dos médicos na Barra da Tijuca, encontrou no porta-malas de um carro no bairro Gardênia Azul, 8 das 21 armas de uso exclusivo do exército.
Ao que parece, a ideia de devolver parte do arsenal teria partido do próprio Comando Vermelho, na tentativa de evitar o aprofundamento das investigações no local.
Não é um caso inédito: documentos de investigações militares dão conta de outros furtos de armas privativas do Exército, ainda em 2020.
O estado paralelo, comandado pelo que hoje sabemos “consórcio narco-miliciano”, já não conta apenas com a colaboração de alguns políticos, juízes, policiais; se estendeu também a militares das forças armadas.
A realidade, cada dia mais insuperáveis, nos revela a crescente dos nossos problemas. Não é apenas a ideologia fascista que se tornou uma arma contra a paz na república, mas também o crime organizado, que encontrou nos últimos anos a porteira aberta para entrar na instituição que tem como razão de existir e finalidade precípua, a defesa da pátria.
É fundamental o resgate institucional das forças armadas e isso passa, necessariamente, pelo “corte na carne”, pela exposição e punição daqueles que enveredaram, seja em intentonas golpistas, seja na associação ao crime organizado.
Essa é uma urgência democrática, da qual seremos cobrados, como nação, pela História.