A extrema direita e o projeto do tecnoautoritarismo
No início deste ano publiquei um artigo, aqui no Brasil 247 (“Eu sou o estado”: o delírio do Rei Sol tabajara), sobre a descoberta de um sistema secreto para monitorar jornalistas, opositores e desafetos, que chamei na época de SBI – Serviço Bolsonarista de Inteligência, uma verdadeira réplica do antigo SNI (Serviço Nacional de Inteligência), dos anos de chumbo da ditadura militar.
Agora, volto ao assunto ao tomar conhecimento que o avanço das investigações da Polícia Federal não só confirmou a arapongagem, como descobriu o tamanho e a extensão da ação. Só nos últimos três anos do governo Bolsonaro, a Abin monitorou a vida de mais de 33 mil brasileiros, incluídos aí desde políticos adversários, jornalistas, advogados, um homônimo do ministro Alexandre de Moraes e até mesmo técnicos do TSE. Foram mais de 30 mil acessos.
Talvez influenciados pelos casos de intrigas envolvendo os amigos milicianos, Bolsonaro e seus filhos, principalmente Carlos, sempre cultivaram uma mania de perseguição. Algo doentio.
Isso vem de longa data e está intimamente ligado aos negócios da família. Denúncias que rodaram os gabinetes políticos do patriarca e de seus filhos, esquemas de desvio de dinheiro público que teriam o envolvimento de parentes, amigos e milicianos naquilo que se convencionou chamar popularmente de “rachadinha”.
O bloqueio dessas investigações levou inclusive à queda de Sergio Moro, um ano e três meses após sua nomeação no ministério da Justiça. Com a chegada ao poder, Bolsonaro não mediu esforços para blindar a si próprio e à sua família de qualquer investigação. Usou e abusou de mecanismos para não prestar contas de sua administração, criando todo tipo de dificuldade, inclusive a não liberação para os jornalistas de documentos solicitados através da Lei de Acesso à Informação. Bolsonaro chegou ao cúmulo de impor sigilo de 100 anos a atos e informações pessoais de integrantes do governo ou mesmo de sua família. A desculpa era a necessidade de proteção de informações pessoais. Daí a criar um monitoramento ilegal de seus desafetos, foi um pulo, que provavelmente tem o Carlos Bolsonaro como mentor intelectual. Carlos não só pretendia, mas ao que tudo indica pôs de pé, sua Abin paralela. O ex-ministro Gustavo Bebiano chegou a falar sobre isso numa entrevista que deu ao programa Roda Viva, em março de 2020. Ao responder uma pergunta sobre o gabinete do ódio, que muitos diziam funcionar dentro do Palácio do Planalto, Bebiano afirmou: “Um belo dia, Carlos me aparece com um nome de delegado federal e três agentes, que seria uma Abin (Agência Brasileira de Inteligência) paralela, porque ele não confiava na Abin. O general Heleno foi chamado e ficou preocupado com aquilo. Mas o general Heleno não é de confrontos e o assunto acabou ali, com o General Santos Cruz e comigo. Nós aconselhamos ao presidente que não fizesse aquilo de maneira alguma, porque muito pior do que o gabinete do ódio, aquilo também seria motivo para impeachment. Depois eu saí e não sei se isso foi instalado ou não”. Bebiano não teve tempo para saber, morreu poucos dias após a entrevista, aos 56 anos, vítima de um infarto fulminante. O relacionamento entre Carlos e Bebiano era péssimo e foi determinante para o rompimento dele com o então governo. O ex-ministro sempre deixou no ar ter conhecimento de fatos não esclarecidos sobre a tal facada, ocorrida na campanha de Bolsonaro, em 2018. Segundo Bebiano, foi Carlos quem impediu que o pai utilizasse o colete à prova de balas no dia do comício em Juiz de Fora.
Voltando ao maior escândalo de espionagem da república, o que a PF já tornou público é que o equipamento foi usado para monitorar pessoas sem autorização judicial, e, a partir daí, acompanhar seus passos em tempo real.
Mas a menina dos olhos de Bolsonaro era mesmo o programa Pegasus, que tem um potencial ainda maior que o monitoramento físico, o de invasão e hackeamento do aparelho celular. Foram muitas as tentativas de compra do equipamento pelo governo. Chegaram até a lançar um edital para adquirir um sistema semelhante, o Harpia. O fato é que essas ferramentas que já são potencialmente perigosas, nas mãos dessa turma da extrema direita, se tornam verdadeiros instrumentos de imposição pela força, uma espécie de tecnoautoritarismo. Preocupante saber que o governo paulista, na época de João Doria, contratou o mesmo software israelense usado pela Abin para espionar adversários de Bolsonaro. Equipamento que está à disposição da “inteligência” do governo Tarcísio, que abriga boa parte dos bolsonaristas que migraram para São Paulo.