A delação do general golpista da Bolívia que se acovardou
A sensação na imprensa e nas redes sociais bolivianas no momento é a lavação de farda suja dos militares que aplicaram o golpe em Evo Morales em novembro de 2019. Se prestarmos atenção no que acontece lá, poderemos prever o que pode acontecer aqui, se o blefe de Bolsonaro for levado adiante.
Relembremos antes que os ex-chefes das três armas estão presos em La paz. O general Jorge Mendieta, ex-comandante do Exército, foi encarcerado em março.
O também general Jorge Gonzalo Terceros Lara, ex-comandante da Força Aérea, e o vice-almirante Palmiro Gonzalo Jarjuri Rada, da Marinha, foram presos agora, no início de julho.
Os três caíram porque, depois da vitória dos golpeados na eleição do ano passado, subestimaram o Ministério Público e a Justiça e não fugiram. O único fardado que fugiu (e pode estar no Brasil) é o ex-chefe das Forças Armadas Williams Kaliman.
O general foragido é agora o alvo dos depoimentos e dos recados dos que estão presos. O que eles dizem é deduragem contra os ex-parceiros e funciona como uma delação, mesmo que não tenha sido formalizada.
Jorge Santistevan, advogado de Mendieta e Terceros, tem contado que os dois não tiveram participação na redação do manifesto dos chefes militares de 10 de novembro.
O documento, lido por Kaliman em vídeo depois transmitido pelo Twitter, sugeria que Morales deveria renunciar. Além dos generais Mendieta e Terceros, o almirante Flavio Arce San Martin, ex-chefe do Estado Maior, diz a mesma coisa.
Todos aparecem, fardados e em pose militar, na famosa cena da leitura do documento. No depoimento que deu como investigado por motim e pelo golpe, Tercero disse, a respeito da encenação: “Somente posei para a foto”.
O general assegura que a nota foi redigida pela equipe de comunicação de Kaliman. O chefe de todos eles chamou os comandantes à sua sala, naquele dia 10 de novembro, e anunciou que iria ler o manifesto sugerindo a Morales que renunciasse. Um detalhe: seria uma sugestão.
O jornal Pagina Siete contou tudo em detalhes, a partir das queixas dos delatores. O que eles dizem é que os cinco participantes subalternos da cena, que estão em volta de Kaliman, não deram nenhum palpite na redação do comunicado.
Terceros e Arce asseguram que a nota lida por Kaliman teria sido um truque, por dois motivos. Como a pressão para o golpe havia sido das polícias, e não dos militares, que foram levados a apoiar o motim, era preciso marcar posição.
Com o comunicado sendo redigido pouco antes de Evo Morales anunciar que deixaria o governo, as Forças Armadas estavam tentando dizer que eram protagonistas do golpe.
O segundo motivo é derivado do primeiro. Os dois delatores dizem que Kaliman sabia que Morales iria renunciar. A nota teria o objetivo de pegar carona no que já sabiam que aconteceria.
É possível aprender muito com o golpe boliviano. Primeiro, é preciso prestar atenção em notas que tentam transmitir consensos, como aconteceu há pouco no Brasil com o comunicado em que o ministro da Defesa, Braga Netto, e os comandantes das três armas enquadram o presidente da CPI do Genocídio, Omar Aziz.
Também é educativo prestar atenção nos traumas provocados por um fracasso, quando todos os chefes militares golpistas (com exceção de um, foragido) estão na cadeia junto com os seus cúmplices civis.
Jorge Gonzalo Terceros Lara não assume seu protagonismo e delata Kaliman, mas se sabe que foi o mais furioso de todos os comandantes manobrados pelos civis da extrema direita e pelos policiais amotinados.
Terceros é acusado de tentar reter no aeroporto, sem apoio dos demais comandantes, o avião que iria levar Evo Morales para o exílio no México.
Também era Terceros quem negociava ajuda externa ao golpe com a Argentinha e, possivelmente, segundo suspeitas levadas à Câmara dos Deputados da Bolívia, com o Brasil e o Chile. Pois Terceros se revela agora o mais acovardado de todos os militares golpistas.
Se colocassem todos eles na mesma sala hoje, como fizeram em 10 de novembro de 2019, teríamos uma batalha entre inúteis que nem golpe sabem aplicar.